Borrões sobre o que chamam de filosofia

O escrito abaixo publicado é fruto de estudos e não reflete a moral do autor, apenas pontos destacados e relacionados entre a filosofia de Condillac e o mundo contemporâneo.


O pensamento de Condillac e os costumes contemporâneos

A Idade Moderna representa para a Filosofia um importantíssimo marco no desenvolvimento do pensamento e do modo de pensar. É a partir da ruptura com a Idade Média e seu teocentrismo sempre baseado na fé e na verdade revelada que se desencadeará uma nova forma de pensar que influenciará todos os anos vindouros, inclusive os atuais, da contemporaneidade. Somos herdeiros da filosofia dos Modernos e o pensamento de hoje é senão desdobramentos da Modernidade e do novo modo de pensar o mundo.

É neste ensejo que queremos analisar a relação entre o pensamento de Étinne Bonnot de Condillac, um dos filósofos de maior destaque do Iluminismo francês, e os costumes adotados pela sociedade contemporânea, sobretudo o modo de pensar e agir das massas humanas que vivem em pleno século XXI. O que aqui apresentamos são apenas escorços – pois não se pode chamar de conclusões um estudo superficial de tão profundo tema – obtidos a partir de reflexões pessoais bem como e, sobretudo, das obtidas em sala de aula.

A filosofia de Condillac segue a linha do inglês Thomas Hobbes. Uma vez podendo ser considerados empiristas quanto à definição da origem do conhecimento e da constituição de ideias, compartilham das mesmas linhas mestras de pensamento. Hobbes definia a sensação como origem de todos os pensamentos, pois os conceitos expressos pelo pensamento são derivados de estímulos externos guardados através da imaginação. Para Hobbes, os conceitos que o homem cria parte do ato de repassar uma sensação e a sensação é importante pois é unidade mínima da máquina humana e gera pensamento.

Da mesma forma que Hobbes, Condillac critica o inatismo das ideias e baseado na filosofia de Locke, avança seu pensamento, tendo como principal ideia a de que todos os conhecimentos e todas as faculdades vêm dos sentidos, ou melhor, das sensações. E para chegar ao tema proposto no início deste texto temos que seguir uma linha de raciocínio, aparentemente lógica, até o prazer como determinante para a ação humana.

Para Condillac, as inquietudes humanas são o princípio de nossas determinações, que por sua vez nos levam ao sensível. As inquietudes possuem fontes diversas, mas podem ser causadas pela privação de um objeto, por exemplo. Essa inquietação causada por uma privação é a própria carência, e desta carência nascem os desejos e desenvolvem faculdades; é da inquietude que nascem todos os hábitos da alma e do corpo.

As sensações são de importância primaz no sistema filosófico de Condillac, e por isso sua filosofia é também chamada de sensual. Podendo ser considerada a pedra angular de seu pensamento, afirma que são as sensações canais pelos quais emanam os sentidos.

O outro fator deste pensamento que dá segmento à mesma linha de raciocínio é que a sensação, quando distribuída em mais de um objeto torna-se atenção. As impressões, quando são de grande número, fazem com que concedamos mais atenção a uma que a outra. Dessa maneira, selecionamos o que nos apraz mais e guardamos esta sensação na memória. À sensação que se tem no momento, Condillac chama de impressão, sensação atual. E às sensações passadas, transformadas, chama de memória.

Os objetos captam de nós a atenção e nos causam impressões pelos sentidos – sensação - e nós estabelecemos relações e comparações entre eles, formando assim ideias e reflexões. Todas as sensações que possuímos posteriormente são derivadas da memória, ou seja, pressupõe que anteriormente tenham existido outras sensações. E se há um arquivamento se sensações, a memória, por consequência existem os pensamentos que mais nos agradam e mais nos levam à felicidade. Ou seja, fazemos uma “seleção”, escolhemos as sensações que contribuem para nossa felicidade e a ela devotamos mais atenção: a isso Condillac chama de desejo.

Não há sensações indiferentes senão por comparação; cada uma é em si mesma agradável ou desagradável: sentir-se e não sentir-se bem ou mal são expressões completamente contraditórias [...] Não saberíamos estar mal, ou menos bem do que havíamos estado, se não comparássemos o estado em que estamos com aqueles pelos quais passamos. [1]

O desejo é movimento da alma rumo àquilo que mais apraz ao sujeito, e do desejo nascerá as paixões, como o amor, o ódio, a esperança, o medo, a vontade. Portanto, tudo aquilo que experimentamos através dos sentidos, mais especificamente das sensações, faz com que permaneçamos com aquilo que mais nos concede prazer. E aqui entra o ponto chave desta presente reflexão: pelos sentidos os objetos causam impressões, a isso se chama atenção; a atenção faz com que se relacionem as sensações, sejam da memória, sejam da sensação atual, que geram ideias, reflexões e desejos. Destarte, o que produz atenção são o prazer e o sofrimento – a intensidade pelo preferido – e isso fará com que essa escolha de permanência daquilo que experimentei conduza inevitavelmente o comportamento do sujeito.

Este era o ponto a que se intentara chegar com estas elucubrações: perceber que o comportamento humano é orientado pelo prazer, ou desprazer, pois é pelas sensações que o homem busca sua felicidade e, mesmo que não tenha ciência disso, sua conservação. O prazer sempre determinará, segundo a filosofia de Condillac, aquilo que o sujeito buscará através de seu desejo: o ser humano almeja o que lhe dá prazer.

Mas pelo que podemos constatar a filosofia de Condillac não ficou restrita somente ao seu tempo, contudo podemos relacioná-la com nosso cotidiano e ver os mais variados modos de viver, os diversos costumes, que se encaixam perfeitamente na teoria condillaquiana, como se as massas de hoje conhecessem o pensamento deste iluminista francês. O fato é que a sociedade, ainda que possa ter se modificado em seus adjetivos, jamais deixou de ser um conjunto de homens movidos pelo prazer, seja no século XVII, XVIII ou XXI

O indivíduo da segunda década do século XXI torna-se ainda mais anódino, pois, além de se encaixar na simples e eficiente explicação de Condillac, é objeto de um imediatismo radical e de um relativismo estéril que, ao apregoar o niilismo, mostra-se acéfalo e sem personalidade própria, mas com uma pseudo-força arraigada não na necessidade derivada de uma empatia, compaixão ou compromisso, mas sim à deriva do prazer imediato.

Hoje é fato, e não há como negar, que a finalidade da vida está nos prazeres individuais e instantâneos. Os costumes - entendam-se aqui como práticas - rumam à confirmação da tese de Condillac: o indivíduo, através da distinção entre sensações positivas ou negativas, escolherá aquilo que lhe é benéfico e lhe dá prazer.

Podemos ilustrar esta teoria com alguns exemplos: a explosão das redes sociais virtuais e o aumento vertiginoso de seu uso é uma prova da ininterrupta busca da satisfação individual, da interação solitária, do prazer na hora determinada pelo gosto e vaidades. Ainda que existam redes de amigos, são elas falsas pela distância e raro encontro físico e reforçam a tese da individualidade. Cada indivíduo, defronte sua máquina, faz-se independente.

O que é a internet se não um exemplo de motor gerador de sensações? Conforme Condillac, as sensações são “nossas maneiras de ser”[2] como então não imaginar algo mais vazio que o indivíduo mergulhado nas sensações provenientes do mundo virtual? Pois não se pode negar: a internet é símbolo do abstrato, de algo que existe no nada, ainda que metafisicamente esta concepção esteja equivocada, coisa que pode desaparecer como se nunca tivesse existido. E assim esfacelam-se as relações pessoais, os compromissos, a cordialidade, o toque físico corpóreo e até mesmo as paixões carnais dos sexos opostos.

Qual outro lúcido exemplo para ilustrar o homem movido pelo prazer se não o também crescente número de seitas neo-pentecostais protestantes bem como de seus adeptos? Ainda que nalgumas vezes não apresentem uma busca desenfreada pelo imediatismo, é uma gritante demonstração do pragmatismo, utilitarismo, da busca do prazer, do aprazimento. Cabe-nos uma interrogação em nível de especulação filosófica – para não recair no juízo temerário: será que as multidões arrastadas por seitas protestantes recém fundadas – leia-se inauguradas – são movidas realmente pelo compromisso com a doutrina de tal organização ou pela lei moral que fundamenta e que rege a instituição, por exemplo? Muito barulho substituiu o silêncio; muitas palavras substituíram a contemplação, o clamor passou a ser exigência: tudo pelo prazer imediato.

Tudo isso é orquestrado por figuras dotadas de uma retórica popularesca, homens que se tingem da figura de pastores, mas que desejam congregar apenas o material e não mais o espiritual. Nestes casos apresenta-se a questão financeira, a busca desenfreada e irracional pelas posses e riquezas, deixando de lado a essência do ser, transfigurando-a. Nestas seitas a religião deixou de ser compromisso para ser realização pessoal, perdendo o caráter de mistério para ser uma desnudada realidade pragmática, onde o livro sagrado é o livro-caixa, e o mandamento maior é o prazer pessoal.

Estes dois exemplos querem dizer uma só coisa: na medida em que o prazer determina aquilo que é desejo do indivíduo, formando suas ideias e juízos visualizamos claramente o hedonismo, onde o fim do viver são os prazeres. Ainda que até mesmo os epicuristas tenham apregoado o hedonismo, a vida na constante busca da felicidade, passando por Condillac, que escreve sobre as sensações, os desejos e o prazer, a massa humana de hoje vive alicerçada pelo pensamento hedonista radical, extremado. O homem é conduzido, empurrado, levado pela enxurrada da filosofia do imediatismo e do consumo. Quem não busca a todo tempo o prazer individual está em desvantagem em relação àquele que vive do prazer sensual e é colocado à margem por aqueles que são importantes por viverem para o útil, o prazeroso.

O hedonismo da contemporaneidade, que está impregnado em nossos costumes, é bastante diferente do de Epicuro, pois este procurava, através do prazer, dar sentido à vida na busca da felicidade, fosse a curto ou longo prazo. Já em Condillac, o prazer e o desprazer vão nortear o homem, mantendo a vida entre os extremos. É neste ponto que os dias atuais perdem: vive-se nos extremos, e todo extremo é inconveniente, e o prazer em demasiado acaba tornando-se vício. Por aí caminha a humanidade. Caminha?

Este tema da Filosofia Moderna, mencionado por Locke, Hobbes e mais especificamente por Condillac é, como dito nas primeiras linhas, amplo demais para reduzi-lo em uma breve reflexão. Contudo, esperamos ter conseguido encontrar e manter uma ponte relacional entre o pensamento do francês e a Era Contemporânea, sobretudo os dias em que vivemos. Se Aristóteles considerava o homem um animal político, ousamos dizer que Condillac, dentro da Modernidade, ferrenha racionalista, afirmaria ser o homem um animal sensual ou, após isto, um animal passional. E o homem de hoje, como definiríamos? Esta dúvida é plausível diante do nada Contemporâneo.



[1] CONDILLAC, E. B. Resumo Selecionado do Tratado das Sensações. Coleção Os Pensadores, p. 50.

[2] Idem, p. 53

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