Reflexão
Da
Conveniência à Convergência
De profetas da desgraça, o mundo está cheio. De
vozes agourentas, nossa terra já está repleta. Mas ser pessimista é diferente
de ser realista. Embora eu seja um otimista imperdoável – ou um esperançoso, e
aí há uma abissal diferença – penso que nossa atual conjuntura precisa de um
realismo engajado, concreto. Perceber a situação, e tomar conta de que meu eu
está inserido na problemática planetária é urgente. Reconhecer nosso pecado é
um passo decisivo para a cura.
Em primeiro lugar, um mal há de ser reconhecido
neste mar de anormalidades. Chamemos aqui de incoerência. Talvez seja esta a
lança mais sutil que perfura sem fazer alarde, e sangra sem permitir que o
sujeito ferido perceba sua chaga. A questão da coerência deve ser tratada com
delicadeza, com simplicidade, mas também com sinceridade, pois muitas regras
são ditadas, contudo, o seguimento dessas normas faz com que surjam os
problemas hereditários da incoerência.
Se leis são estabelecidas, e há uma
obrigatoriedade se seu segmento como parte da vida, sem liberdade de escolha,
aí existe uma chance da incoerência ser passível de perdão. Por exemplo: se um
cidadão, de cujo pais está sob domínio de um governo totalitário, recusa-se a
seguir as leis de seu estado, e pratica algo diverso da obrigação, ou
simplesmente não cumpre a constituição legal, torna-se um desertor justamente
justificável. O problema é grande quando o líder deste mesmo país totalitário,
que formalizou a lei e obrigou outros a cumprirem, não a cumpre. Embora esse
exemplo seja tosco e vulgar, é o ponto de partida para compreender o problema
da incoerência.
Esta dificuldade é muito mais emblemática – e
preocupante – quando a incoerência acontece por parte daquele que se propôs –
ou seja, não imposto – a seguir uma regra, norma ou lei, por vontade própria, e
não pratica esse segmento depois de ter abraçado tal decisão.
Pode ser que muitos aleguem que a exigência da
liberdade é muito maior que a da arbitrariedade, contudo, meu otimismo me
impede de ver as coisas na “crueldade” da realidade. Sempre penso que o ser
humano pode ser mais, que consegue dar o passo além, simplesmente é capaz. Esse
mesmo otimismo me faz não compreender porque isso acontece: se meu passo foi
consciente e livre, porque divergir durante a caminhada?
Certa vez me disseram que todos somos
incoerentes, pois a coerência é própria dos seres perfeitos, e como não o
somos... Concordo com o dito, mas creio que isso não pode ser usado como
justificativa. Sou incoerente, mas o desejo de não o ser já me faz coerente com
a própria coerência. A coerência, para compreensão, também poderia ser dividida
em graus. Dependendo do fim a que se é fiel. Ainda assim, chegamos em uma
conclusão única: quando a questão é compatibilidade de palavra e ação, a práxis
é muito mais importante. Entretanto, quando a perseverança de propósito
torna-se cada vez mais afligida, precisamos de base sólida para nos agarrar. Há
a necessidade de reunir a dispersão que existe dentro da vontade da benignidade
de escolha.
Sinto um cheiro da necessidade do radical, mas
sem radicalismos. Mas como viver esse discurso em uma esfera comercial, que
alimenta o hedonismo e o egoísmo, fazendo-os escravos do fator monetário? As
tentações hodiernas infiltram estruturas cujos engajados, não feitos na
totalidade, se tornem influenciados, manipuláveis, e pensam, por fim, poder
conciliar a regra com as tentações, que acabam se convertendo em ilusórias
exceções saudáveis.
E notamos, mais do que antes, o desejo sempre
crescente do ser humano de que o mundo deve girar em torno de si, favorecendo
seus prazeres. Há uma sede de conveniência mesmo quando houve uma livre
disposição da renúncia de si mesmo. Talvez, a conveniência engana-nos a nós
mesmos.

A tentação da cegueira voluntária é presente, e
só será vencida quando houver uma conversão – ou uma passagem, como queiram –
da conveniência para a convergência.
A convergência representa a estratégia a ser
seguida quando se está diante do ataque da dispersão da conveniência, que leva
à incoerência. Pode-se dizer que convergência está para a coerência assim como
a conveniência pra a incoerência. Uma conduz à outra, sendo indissociáveis na
vida humana.
Registre-se aqui que realizar essa conversão
acima citada exige uma força hercúlea, mas ainda assim possivelmente humana. E
essa realização já não se pode mais fazer no âmbito da teoria– como estas
linhas que você está lendo. Essa atuação acontece na vida realmente vivida,
tendo como apoio a teoria que, por sua vez, é um preâmbulo esclarecedor e um
plano de metas.
Refletir sobre a coerência, a conveniência e a
convergência exige muito mais tempo e espaço. Ainda assim, lança-se a semente,
que constitui a esperança fundamental daqueles que desejam convergir ao
Absoluto.
Comentários
Marco Aurélio Casagrande